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22 de outubro de 2008

O dogma e o equívoco

Maria de Lurdes Rodrigues, Ministra da Educação, deu uma entrevista à revista Visão.
A dado passo o jornalista diz-lhe que há cerca 7,4% de alunos que reprovam na 2.ª classe e pergunta-lhe se vale a pena reprovar os alunos. A ministra respondeu assim:

“Não vale. E isto para uma criança de 7 anos é dramático. É o início de um percurso desastroso. Absolutamente desastroso. São estas crianças que depois abandonam a escola. A primeira coisa é que ficam num ano de ensino desajustado à sua idade. Todos os amiguinhos que vão ter no ano a seguir, já não são os mesmos, são mais novos, e começa aí um processo de desajuste. Todos os estudos provam que a repetência não permite recuperar nada. Porque é que ficam para trás? Porque antigamente a escola era assim.”

Esta resposta da ministra é uma declaração desassombrada e até mesmo corajosa. Ela escancara à evidência uma das razões, quiçá a mais relevante, para a baixa qualidade das aprendizagens dos alunos portugueses. Para ilustrar o que digo, vou aqui contar a história do Zé, de um dos muitos “Zé” que conheci e conheço:

O Zé entrou para a primeira classe e desde cedo revelou dificuldades na aprendizagem. A professora, atenta e dedicada, logo ensaiou estratégias diferenciadas para o ensino do Zé. O êxito, todavia, foi quase nulo. A professora, então, elaborou um relatório sobre o Zé e as suas dificuldades e o Presidente do Conselho Executivo determinou que o Zé passasse a ter horas de apoio individualizado com outra professora. E assim se fez. Mas, novamente, sem êxito. Chegado o fim do ano, feito o balanço, a professora concluiu que o Zé não estava em condições de passar para a segunda classe. Só que a Lei…
A lei é o Despacho N.º 1/2005, que no número 55 diz assim: “No 1º ano de escolaridade não há lugar a retenção, excepto se tiver sido ultrapassado o limite de faltas injustificadas, em observância do disposto na Lei nº 30/2002, de 20 de Dezembro.”
Portanto, em vez de reprovar, o Zé passou para a segunda classe, acompanhando os amiguinhos, ao abrigo do sistema de passagem automática de que fala a senhora ministra, que, como se vê, já existe em Portugal.
No ano seguinte o Zé manteve a professora de apoio desde o início do ano. Mas quando esta não estava, a professora do Zé, que não era nenhuma super-mulher – nenhum professor é um super-homem – tinha dificuldade em conciliar o ensino do Zé com o dos colegas. E o que é verdade é que o Zé cada vez estava mais longe deles no progresso da aprendizagem.
O Zé gostava muito de brincar com os amiguinhos no intervalo. Mas, quando dentro da sala, o Zé ficava algo triste. Os amiguinhos faziam coisas que a professora mandava e que ele nem sequer percebia. Liam textos, discutiam, faziam composições e até já resolviam problemas de aritmética, e ele ficava sempre confuso e triste por não compreender nada daquilo. Era um “seca” estar dentro da sala. Ficava um bocadinho mais satisfeito quando ia para o computador brincar com um jogo engraçado, mas logo aparecia a professora a dizer-lhe para fazer umas coisas esquisitas. Que “seca”!
A professora, então, elaborou um relatório – mais um – e o Zé foi observado por uma psicóloga que fez algumas recomendações quanto às estratégias e às próprias actividades que lhe deveriam ser propostas. E assim foi feito, tanto pela professora da turma, como pela professora de apoio. Mas os progressos foram muito pouco sensíveis.
Chegados ao fim do ano, a professora propôs que o Zé reprovasse, que ficasse retido na segunda classe. Mas a lei…
A tal lei, no número 56, diz que: “Um aluno retido no 2º ou 3º ano de escolaridade deverá integrar até ao final do ciclo a turma a que já pertencia, salvo se houver decisão em contrário do competente conselho de docentes ou do conselho pedagógico da escola ou agrupamento, de acordo com o previsto no regulamento interno da escola ou agrupamento, sob proposta fundamentada do professor titular de turma e ouvido, sempre que possível, o professor da eventual nova turma.”
Ora, por causa disto, a professora fez um extenso relatório, pormenorizando as dificuldades do Zé e identificando todas as estratégias e medidas de apoio já utilizadas, concluindo com a proposta de que o Zé reprovasse e mudasse para uma turma da segunda classe, mais adequada ao nível de desenvolvimento do rapaz.
O Conselho Pedagógico, apesar do inerente aumento da taxa de insucesso, acabou por concordar com a proposta da professora. Só que o Presidente da Escola não lhe pôde dar seguimento: as várias turmas da segunda classe que iriam funcionar no ano seguinte já tinham o número máximo de alunos, 24, e, para que uma delas recebesse o Zé, seria preciso pedir uma autorização à Direcção Regional de Educação, sob pena de ficar em desconformidade.
Por esta razão, o Zé continuou na mesma turma dos amiguinhos. A professora também. Aliás, a super-professora ainda ficou mais super; tem, agora, os alunos que passaram para a terceira classe, tem dois alunos que estão um pouco mais atrasados e que vão seguir o programa da segunda, e tem o Zé que ainda está ao nível da primeira. Uma turma que deveria ter alunos de um só ano tem, afinal, miúdos de três anos! E não se pense que isto acontece numa escolinha de lugar único num qualquer recôndito lugar deste país. Não! Isto passa-se num moderno e bem equipado Centro Escolar!

E chega.
A continuação desta história pode ser escrita por qualquer pessoa: o progressivo distanciamento, a reprovação no 5.º ou no 7.º ano, o abandono, e até mesmo a evolução para comportamentos de indisciplina, todos sabem o resto.

Mas não tinha que ser assim! O Zé não deveria ter sido abandonado à sua sorte sob a aparência de se pretender o contrário. E haveria duas alternativas:

O Zé poderia ter ficado reprovado logo no primeiro ano. Sem dramas nem traumas. Rapidamente faria novos amiguinhos que teriam um nível de desenvolvimento mais de acordo com o dele. E, se traumas houvesse, seriam sempre mais benignos do que o que o marcou quando percebeu que não conseguia fazer as mesmas coisas que os colegas.

Mas também poderia não ter reprovado.
Efectivamente, podemos ter um sistema de passagem automática. O que não podemos é passar os miúdos para o ano seguinte mantendo juntos alunos que apresentam níveis de desenvolvimento distantes. Os alunos que transitarem sem terem atingido o nível previsto deverão ser agrupados numa turma homogénea. E que não se diga que isto é elitismo. É exactamente o contrário. É assumir que é preciso recuperar aqueles alunos e que os professores – que não são super-homens – terão menos dificuldade que se tiverem de dispersar a atenção por grupos distintos. Sei bem que isto não se coaduna com os dogmas sociológicos das Ciências da Educação, mas são exactamente esses que nos vêm afundando de há muitos anos a esta parte.

É fundamental assumir estas premissas nos 4 primeiros anos de escolaridade, isto é, na escola primária. É ela que determina o futuro dos miúdos. É nela que se adquirem as competências estruturantes que hão-de permitir o aprofundamento dos conhecimentos e sem as quais não será possível progredir, por mais apoios que se dêem aos alunos.

Se assim fizermos na escola primária, resolveremos a maioria dos problemas que actualmente surgem nos oito anos seguintes.

Também publicado no debate Educação

(O Despacho 1/2005 é de um governo do PSD mas, como tenho dito, as ciências da educação corromperam transversalmente o espectro partidário: eles têm que se citar uns aos outros...)

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